quarta-feira, 29 de junho de 2011

Esperança

Procurando a perfeição de bailarina, dancei palavras
Estive frente a frente com Leão, em silêncio, no meio de amontoados de morte
Andei com a loucura
Desenhei nas mãos negras, de unhas azuis com a tinta da laje de Nossa Senhora
Forma desenhada de letra poéticamente cantada
Deixe-me só com meus pensamentos, não consigo continuar com você me seguindo
Voz rouca do violão soou na janela iluminada pela lua, no chão virgem de outros passos
Com poeira entre as frestas e vidros transparecendo a mesa de jantar
Ao final do dia com a rede já molhada pela chuva e o sol secando o varal, observei um beija-flor
Beija que chega no vazio dos olhares mornos de cansaço
Me faz mulher, sentir vida, tão viva, tão morna
Escama de verde prateado te fiz desejo
Melodiosa calvagada entre cordas e pandeiros

sábado, 18 de junho de 2011

Vida

Há algum tempo atrás passei por um senhor que sofria de câncer. Ele já não sentia mais o sabor do macarrão, não conseguia mastigar a batata cozida da sopa, e nem ao menos sentir o cheiro de roupa passada que tanto gostava.
Vê-lo me levou a não ignorar a vida, porém um novo câncer surgia.
Essa doença foi degradando cada partezinha do sistema. Sabe, aqueles tipos de doenças que você não consegue reconhecer muito bem o que é, e já nem se lembra mais por onde começou. Uma dor aqui, uma tontura ali, uma indigestão acolá. Os médicos procuram durante tempos, mas essa é uma típica doença incurável. Para encontrar a cura, se é que fosse possível, teria que começar desde de o principio. Embrenhar nas mentes sedentas de fome de viver, de conhecer "a" verdade. Luta esta, para encontra-la onde quer que seja, como quer que seja. E quando se dá conta, a doença já se espalhou.
Ao receber a notícia, normalmente as pessoas choram se atiram à morte, mas ele não. Ele não seria fraco, queria viver. Queria encontrar um caminho que pudesse ao menos descansar. 
A vaidade e orgulho cobriam os olhos, isso já estava moldado no doente, ele era apenas um pobre coitado que não enxergava, que não via a oportunidade surgir, e quando a avistava deixava que a levassem. Como porcos no leito de morte que gritam tanto e você nunca mais consegue esquecer. Como se aquele barulho penetrasse dentro da cabeça e nunca mais quisesse sair, foi assim, descrevia ele. Um pobre professor, usando a vida como se veste moscas as avessas. Enganando a morte. Mostrando os dentes paras as crueldades do desespero.
Já me refazia, e já pensava na vida com mais fervor.
Ah sobre a doença! Não sabia-se mais se era câncer ou alzheimer.
Uma breve descrição da sensação:
Levantando-se logo após um sono da tarde, não reconhecia o lugar onde vivera mais da metade de sua vida. Apalpava a escuridão, e sentia o ar escuro escorrendo pelas mãos magras de sede. Sentiu a maçaneta fria e redonda, abriu a porta de madeira que fazia um som oscilante e grave. Os olhos arderam diante da luz forte do dia, e aos poucos, a cada passo que se passava, lembrava-se de um detalhe, do quadro florido estampado na parede com tintas azuis e brancas, do lustre de cristais que brilhava a cada movimento breve do vento, dos pequenos rostos gravados nas fotografias sobre a estante, e finalmente se lembrou, que estar em casa, não era o que queria lembrar, mas o que devia estar acontecendo. Uma pena.
Pobre homem.
A dualidade foi sua maior táctica. Já não sabia mais onde começava a vida e onde acabava a morte. Onde terminava a vida e onde começava a morrer. Foi-se feito tudo escuridão.
Apenas consegui sentir suas mãos nas minhas, eram ainda macias e aveludadas, gritavam desesperadamente por socorro, seus lábios só pediam tocar os meus. Numa sensação de euforia e desespero permaneci fria. Talvez pudesse ter cedido mais. Ter olhado mais fundo em seus olhos, mas algo naquele senhor me fez congelar, e ficar intacta.
Desde então, respirei o que é sentir a vida, me tornei toda atenção, cada pequeno músculo escrevia um distinto pensamento, teias de tecidos vivos, alegres, penetrantes que só queriam viver.


segunda-feira, 13 de junho de 2011

domingo, 12 de junho de 2011

Caravaggio dorme em molduras nebulosas, pinceladas de luz atravessam as janelas da capela, e em pé na porta sondam os fiéis que com sombras de crucifixos se transformam em mártires.
Caravaggio dorme num sonho pintado a ouro, redescoberto pelos olhos do artista, manipulado pelas mãos de mudos sinos que ostentam os cabelos de Medusa.
Caravaggio dorme, toda a luta pela demonstração celestial, secados em paredes sagradas, emoldurados em solos cléricos.
Caravaggio dorme, e com ele, a grande revolução que já molhou as pontas de um pincel.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Receita de criança

Quando cheguei tarde em casa e vi minha vó na cozinha, encontrei-a pela metade! Metade dentro do armário, metade fora.
- Vó?
Uma voz abafada pelo espaço, rouca pela velhice e fina pela delicadeza respondeu-me:
- Estou procurando os ovos que guardei em baixo da pia!
A sujeira de farinha, fermento, açúcar e canela, mais o tempo frio e amarelado, seria certo que um doce bolinho de chuva borbulharia numa panela quente de óleo daqui alguns minutos.
- Estou fazendo chá e bolinhos. Com certeza estão com fome.
A vovó sempre sabe das coisas. Quando a criança chora, ela sabe (não sei como) que a criança quer laranja. Quando o sol está brilhando e uma pequena nuvem carregada pelo vento passa, ela sabe que vai chover.
Os bolinhos prontos e quentinhos saem do fogo, são misturados com uma camada fina de açúcar e canela. Macios, com uma massinha no meio, pulam pra dentro da boca! Explosões de carinho e afeto são despejados estômago a baixo.
Na ponta dos dedos ainda reluz o açúcar, parecendo areia da praia e o mar são como as lembranças que o tempo faz levar.