segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Atropelamento

Com a pressa de chegar logo, me deixei ir. Sem marcha, sem freio, apenas com a vontade da lei física. Era velocidade máxima. Vento fazendo zumbido no ouvido. Era o olhar reto. O olhar na pista preta. Preto preto da pista. Preto amarelo da pista. Amarelo da faixa na pista preta. Amarelo da faixa no preto do asfalto. Foi corpo lançado ao chão de um lado, automóvel do outro. Primeiro leve torção no dedo, joelho, braço, ombros, orelha raspada na pedra. Com um pulo já está em pé. Continua a jornada. Pega caminho seguro. Nota borboleta amarela. Borboleta amarela no preto da pista com o vermelho do ônibus. Não tem pressa, mas se entrega ao tempo. Borboleta amarela fechada pelo ônibus vermelho no preto da rua. Era borboleta. Era eu. Borboleta amarela. Era faixa amarela no meio da pista.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

De fraqueza

Olhos razos d'água
Fundos vazios
Astor ao fundo em frente ao toque
Como um pássaro perdido
de dedos fugidos no tempo
na lembrança da vida
Que parece jamais recuperar a distância
a frieza encostada no peito
Diz que é a força do cansaço
Viveis a ignorância da disposição
Enérgica cólera de prazer que se afoga no meio das veias azuis
apontada pela cor da pele transparente
te enxergo por dentro
A intimidade do medo compartilhado foi fato não vivido
Lembrado

Tempos de paz

"Eu não vivi. Eu colecionei lembranças."

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Ao tomar para mim parte deste afeto materno, com o qual me inspirei em algumas folhas lavadas a seco de um livro, resolvi escrever a você, Pedro. Estou tomando parte prévia deste texto para não só despencar todas as informações acima de sua cabeça, mais ainda para intimidar o seu ego, e ver até onde poderei chegar com conclusões certas sobre os assuntos que você, sim você, me permitiu tomar todos esses anos em que me deixou sozinha.
Lembra que naquela semana do dia vinte você pensou em vir me visitar mas hesitou? As suas decisões são assim como são os raios nos céus, elas sãos vistas, colocadas em destaque, mas daqui cinco minutos ninguém mais lembra.
A música  que estava tocando no rádio naqueles dias era o som da chuva. Tabuque de terreiro. Era o som da panela de pressão, cozinhando legumes para o jantar. Seu prato prediléto sempre foi a sopa.
Consigo visualizar agora qual foi o grande passo para Maria se entregar a esse jogo, quais transtornos ela não deve ter passado. Dúvidas inquietas.
Te atingir mostrando o que você tem de pior sempre foi algo muito prazeroso para mim, mas o fato de sermos idênticos e eu sempre ver meus defeitos espelhados, me fazia repugnar a ideia de criar nossa filha ao nosso padrão. O que nunca aconteceu. Ela se epelhou em nós.
É desconcertante quando nos vemos falando sozinhos. Preocupante quando respondemos as nossas próprias perguntas. A loucura estava para nós assim como uma massa de panqueca mole está para uma frigideira. Maria não tinha outra opção a não ser acolher ou se livrar totalmente dela. Maria escolheu a segunda.
Estou sendo breve, objetiva e monótona. Não tenho intenção alguma de te escrever um livro ou uma carta sobre o nosso antigo romance que um dia se pareceu com filmes americanos. Procuro uma razão. Um porquê deste caso horrendo. Uma atrocidade, eu diria.
Percebendo não mais ter o controle da situação, salvo o seu diagnóstico de ver fantasmas. Me vi sozinha novamente. Percebi também que não fiquei só a partir do momento em que Maria resolveu tirar a única coisa que tinha de mais valioso. Nem quando você me deixou. Mas permaneci só desde o ínicio. Quando já era alta madrugada, eu sentia um vazio. Não conseguia confiar nem em mim, imagina se poderia depositar essa qualidade em alguém. Mesmo que estivesse do meu lado, ainda continuava sendo um estranho para mim. Sempre entendi confiança como qualidade. E estranheza como indiferença. Dois corpos, nenhuma compatibilidade. A não ser o fato de sermos idênticos em todos os defeitos. Admitimos não ter nada em comum. Eu não era a única que pensava assim em nossa casa.
Note, nossa filha nunca viu valor em nada. Quanto mais na vida. Se é que ela tinha uma.
A solidão insistiu em achar uma vítima, enquanto você insistia em achar uma culpada. Os dois se saíram bem.

Sem mais. Estou sóbria por alguns momentos. Não me arrependerei de mais nada, daqui a uma hora estarei bem.


Ester
De insônia
com olhos arregalados d'água
Dona Velha dos Espíritos contou-me o que preparar